sábado, 26 de abril de 2014

Eu matei a Elis


Uma das vantagens de ter pouca memória é poder rir da mesma piada. E, já oscilando e comprovando a teoria que minha memória é péssima, eu acredito já ter escrito em algum texto meu sobre minha falta de memória. Pior, não posso nem usar a famosa frase "Se não me falha a memória", porque seria piada até de mau gosto agora.
Todo este contorno para ressaltar que não lembro mesmo das coisas. Poucas lembranças tenho, principalmente da minha infância. Para isso, conto com minha prima e minha irmã, que relembram ou contam casos em que eu participo.
E nesta pouca memória, uma cena ficou gravada com todos os pequenos detalhes:
Eu tinha seis anos. Morávamos na casa dos meus avós, pois minha casa passava por reforma grande. Estávamos em mais cinco na casa do Seu Delfim e da Dona Iaiá.
Minha mãe ajudava nas tarefas da casa, mas eu (claro) não lembro exatamente como era nossa organização lá. Deveria ser uma bagunça só, porque até hoje a casa não sofreu alterações e é pequena para as duas pessoas que a ocupam... imaginem em sete!
Enfim, eu estava na sala, assistindo televisão. E começou uma daquelas músicas que anunciam uma notícia importante: "Morre, aos 36 anos, a cantora Elis Regina".
Eu entrei em choque. Meu coração começou a pulsar na garganta. Eu tremia. Tudo porque sabia o quanto minha mãe era apaixonada pela Elis. E eu teria que contar a ela!
Hoje eu sei o tamanho real da casa. Porém, aos meus seis anos, foram muitos passos... Passei pela cozinha e pela área da lavanderia. Coração apertado, um certo pavor. Minha mãe estava sentada em três degraus que dão para o quintal. 
Passei ao lado, parei de frente à ela e dei a notícia.
Ela arregalou os olhos, colocou as duas mãos no rosto.
"-Você tem certeza, Mari?"
Eu fiz que sim com a cabeça.
Ela abaixou o tronco, colocou as mãos na cabeça. Ficou com o rosto entre os joelhos e começou a chorar. Chorava alto, soluçava. E eu ali, parada, diante da cena do choque da minha mãe.
Não sei quanto tempo essa cena durou. Para mim, foi uma eternidade. Os meus minutos infantis se arrastaram. E tudo que eu pude fazer depois disso, foi acariciar os cabelos da minha mãe, em ato desesperador de consolo.
Fim da lembrança.

Anos da minha vida dedicados a todas as artes possíveis: dança, teatro, canto. Em nenhum fui superstar, porém a todos me dediquei com muita paixão. 
Na parte do canto, a missão sempre foi uma: encantar minha mãe. Queria que ela visse em mim aquela voz que ela tanto amava.
Claro, também nunca cheguei perto da Elis. Nem uma raspinha.
Mas, há dois anos, pude, em uma festa de aniversário meu, cantar para ela. Só para ela.
Todos sentados ao meu redor, meu amigo Tarciso no violão. Depois de muitas canções sobre todas as coisas, eu pedi para que ela me ouvisse. "Essa é só para você, mãe". E à capela, cantei "Como nossos pais", canção de Belchior, marcada na história pela belíssima (e cheia de emoção) voz de Elis Regina.

Mais uma vez, eu vi minha mãe chorar. Mas, dessa vez, foi de emoção.
O abraço que eu ganhei depois, me redimiu da morte da Elis.
Posso ter feito a Elis morrer. Mas, cantei por ela, como minha mãe vive em mim.

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