quarta-feira, 27 de abril de 2016

Sob a coberta


Sob coberta, 
hoje não tão grossa,
vive quem não mais se esconde.

Não cobre mais a cabeça
em noite escura
e sequer foge dos monstros
que atormentam em invernadas internas.

Sob coberta,
existe não mais nova pele
mas pele daquele que 
em esforço contínuo
esfolia calosidade sutil.

Sob coberta,
adormece pessoa velha
e desperta novo espírito 
determinado a amar.

Sob velha coberta,
anestesia engelhada alma
e suscita criança audaz.

Sob coberta,
acontece identidade
que pouca gente descoberta...
Mas basta levantar.


Homenagem a meus amigos: Patrícia G e Marcelo C.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

A difícil missão dos quarenta

É, eu não posso negar.
Chegar aos quarenta tem muitas vantagens, mas eu posso dizer, senhores, que era muito mais fácil ter vinte anos.
Aos vinte anos, você se olha no espelho vendo quem você quer ver: a pele ajuda, as noites de sono também… é muito mais fácil dormir sem as preocupações que a vida impõe.
Aos vinte, você tem a vida inteira pela frente, começa a sua vida adulta, mas você ainda tem a desculpa de ser novo e poder errar.
Aos vinte anos, a gente toma umas lambadas, como aos quarenta também. Mas ao vinte, a gente chora, esbraveja, faz biquinho e conta pra vinte e cinco amigos ou mais… aos quarenta, você tem sorte se tiver um grande amigo que pode realmente contar.
Aos vinte anos, a gente chora de dor. Aos quarenta, você descobre que por algumas dores, nem vale a pena chorar.
Lá nos vinte, a vida não é fácil também, mas você tem a juventude e alguns muitos anos de vantagem se a decisão for errônea… aos quarenta, você não tem mais o luxo de errar.
Aos vinte, você pensa que irá encontrar um amor, que irá formar uma família, e que aos quarenta tudo estará estável, fixo e você poderá respirar tranquilo. Aos quarenta, você descobre que esse plano nem sempre deu certo.
Aos vinte, você tem cabeça pra estudar. É chato para caralho ficar com a cabeça em um livro e tentando decorar uma informação… você pensa “ que desperdício de tempo” e estuda por obrigação. Já aos quarenta, tudo que você queria era ter tempo pra poder ler um livro e claro, ter mais cabeça pra poder segurar alguma informação.
Aos vinte, você tem coragem de pôr uma mochila nas costas, se aventura pra qualquer lugar: dorme em colchonete, passa a noite em claro, banha-se na cachoeira ou fica sem se banhar. Aos quarenta, você dificilmente trocará uma noite de sono na sua cama, em seu travesseiro, por uma aventura sem chuveiro quente.
Aos vinte anos, você se ventura em paixonites.. cai de cabeça quando ouve qualquer cantada, e se deita com alguém que pode trazer nada na sua vida. Aos quarenta, você se recusa a deitar com qualquer um, e entende, bem rápido, quando o outro é vazio, superficial ou desinteressante. Ahhh sim, e fica louco de vontade de se apaixonar.
Aos vinte anos, você não tem medo do dinheiro. Acha que irá consegui-lo de qualquer forma, e se arrisca em contas que, nem sempre, você consegue pagar. Aos quarenta você se esquiva de contas e tenta, de todas as formas, mostrar pro dinheiro que quem manda é você. Mas nem sempre o telhado deixa, ou o pneu do carro, ou a manutenção da casa. Você descobre, aos quarenta, que seus pais eram heróis na arte de economizar.
Aos vinte, você se embebeda. Acorda todo errado, mas em meio dia, já está zerado com fígado limpo e cabeça não latente… se bobear, estraga mais uma noite com álcool. Aos quarenta, você já sabe que não pode misturar bebida, não passa dos limites (bom, pelo menos, assim deveria ser) e agradece a Deus se, em apenas um dia e meio, você ja não ouvir a sua cabeça badalar depois de um porre. Mas demora uns três dias pra se recuperar.
Aos vinte anos, você acha que seu futuro será bom, que os governantes darão um jeito, que a economia melhorará e que você terá seu patrimônio, com trabalho honesto e limpo. Aos quarenta, você descobre que foram poucos os que conseguiram jogar limpo o tempo todo e que, muito do que você ralou no ano, você entrega em imposto pra um bando de desonestos gastar.
Aos vinte, você não liga tanto para seus pais. Eles ainda são chatos, querem saber de tudo e não te dão a liberdade que você já adulto, imagina merecer. Aos quarenta, você começa a perceber que seus pais estão envelhecendo e começa a ter medo de não ter mais tempo com eles.
Aos vinte, você faz coisas escondidas dos seus pais. Aos quarenta, você faz coisas escondidas dos seus filhos (citando Mario Prata).
Aos vinte, você é destemido, ambicioso, seguro e impávido. Aos quarenta, você terá sorte se não for covarde, inibido e temeroso. As pedradas da vida deixam muitos assim.
Aos vinte, a vida nem sempre é tão linda, mas é sempre muito mais fácil passar por cima de um dissabor. Aos quarenta, o fel é quase sempre mais amargo e mais viscoso. 
Aos vinte, você quer encher a sua agenda de compromisso, quer ocupar seu tempo, quer fazer muitas atividades, quer ser útil. Aos quarenta, você só quer ter mais gás para dar contas das obrigações que tem… e claro, adoraria ter menos coisas para fazer. 
Aos vinte, você quer estar rodeado de pessoas e aceita muitas que, nem sempre te fazem bem. Aos quarenta, você evita a todas aquelas que tiram seu sossego.
Aos vinte, você quer ter um belo corpo, uma boa roupa e se enturmar. Aos quarenta, você quer ter uma alma pacífica. 

Aos vinte anos, a vida parece ser bonita. Aos quarenta, você descobre que ela é real. E mesmo assim, a acha incrível.



quarta-feira, 13 de abril de 2016

Na lua ele morava.


Meu primeiro namorado, 
foi só meu.
E o tempo em que estivemos juntos, 
eu fui só dele.

Na meninice da fresca idade,
meus dias eram contados 
pelos suspiros dados 
e pensamentos vagos.

Minha mãe gritava  
“- Menina, saia do mundo da lua”
mas a lua tinha olhos azuis
e cabelos loiros 
utopia seria, voltar de lá.

Era na lua que eu ficava
(e na lua que ele morava)
tamanha distância física de nossas épocas desiguais.

Ele, com suas namoradas mais velhas,
todas lindas
maiores de idade.
Ele, com seu comportamento rebelde,
ideal rijo,
e autonomia.

E eu, corpo atrofiado,
aparelhos nos dentes,
e minha grande idade infantil.

Meu primeiro namorado não sabe
mas se existe aquela verdade 
de permanecer desperto quando alguém sonha contigo,
Muitos dos seus dias de insônia
foi porque ele vivia acordado

nos meus dias e noites de sonhos.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Durante o jogo II


“- Treinador, venha aqui:
Eu quero sair do Time dos Tontos.
Eu preciso de um tempo, quero ficar fora de campo.
Desse jeito, não dá, treinador. Está ficando cada dia mais difícil.
Nosso time está fraco, treinador. Nosso time está exaurido.
O time dos Espertos está grande, cara. Os Espertos estão mais fortes. 
E eles têm patrocínio. 
Estão tomando Whey Protein, treinador. E nós suplementamos com o quê?
Eles tem GH, treinador. Têm em cápsula, têm injetável.
Olhe o tamanhos deles, cara.
Eles estão robustos.
Eles riem da nossa cara, treinador. Eles dominam o campo.
E fora daqui, nos apontam: ‘Olha aí, um dos Tontos’.
Eles se reúnem fora de campo, estão em festas, estão em todos os lugares, treinador. Usam todos os tipos de roupas, se misturam com os nossos. 
Ele têm jogadores infiltrados, que se fingem de Tontos.
Mas na hora da verdade, treinador, eles correm. E como correm rápido, hein?
O pior, treinador, não tem sido só eles se fingirem de contundidos, essa manha nós já pegamos, né? A nova tática dele é jogar a culpa em nós. 
Durante o jogo, eles nos derrubam, e nos levantam na frente do juiz, pra fazer bonito: Enquanto nos levantam, fingem também de arrependidos: ‘Desculpe se você caiu’. Como se a gente tivesse tropeçado, treinador! Eles no empurram, nos derrubam, passam a perna em nós e pedem desculpas pelo erro que nós cometemos ao sermos derrubados? Que tipo de desculpa é esse, treinador?
Precisamos fazer alguma coisa, treinador. Precisamos de mais gente no nosso time. 
Precisamos começar a treinar nossos filhos, porque os Filhos dos Espertos também estão crescendo. E os filhos Deles estão também convencendo aos Nossos.
Precisamos arranjar alguma forma de mostrar pra torcida que nosso Time não tem recurso financeiro, mas nosso Time tem paz no espírito.
Precisamos de mais técnica, treinador. Precisamos de mais tática. Precisamos de mais ginga. Precisamos de estratégia. Precisando de destreza. Precisamos de audácia, treinador!”

Treinador: “- Sendo assim, seríamos como eles.”

“- É verdade, treinador. Deixa pra lá. Foi só um desabafo.
Vamos jogar.”

Intertextualização da crônica Durante o Jogo de setembro de 2015

sábado, 2 de abril de 2016

No mundo das águas

Foi em um camping, em sua pouca idade, onde viu um lago para primeira vez.
Seus amigos todos queriam correr e saltar.
Todos eles nadavam, jogavam pedras.
Ele não.
Ele ia pra margem mais calma, ficava olhando para a água e observava os peixes.
Entendeu que onde havia silêncio, havia confiança. 
E foi no silêncio de uma beira de lago que aprendeu a olhar para dentro, mesmo vendo seu reflexo estremecido pela água agitada dos peixes que nadavam ali, sentia apenas calmaria.
Todas as vezes que podia, voltava para seu lugar. 
Apesar de tanta gente lá frequentar, ele elegeu o lugar só para si. Pelo menos, aquele canto à beira do lago, onde via muito mais que seu rosto na água. Achava o que queria para sempre dentro dele mesmo: a paz.

Mas o menino cresceu. E a cidade cresceu. 
E a cidade, a modernidade, a sociedade, todos eles o engoliram: mastigaram e deglutiram, como fazem com a maioria.
Trabalhou. Casou. Exaustou.
Sufocou. Cansou. Acabou.

Não nessa pressa, mas na ligeireza que o mundo louco atravessa nossas vidas. Como um trem de alta velocidade, onde dentro dele, com pés apoiados, você não percebe sua rapidez, porém quando olha para fora, percebe que está em outro lugar, em outro tempo, e com outra forma.

Agora homem, ele não pode mais fugir. 
Agora, ele é sensato, tem obrigações, tem aspirações. Deve cumprir com suas ordens, deve prestar contas, deve pagar dívidas. 
Mas mesmo assim, ele desobedece.
Quando em vez, ele desce desse trem maluco, e corre para dentro de si. 

Hoje, ele não elegeu só um canto do lago do antigo camping: ele tem o mundo das águas para si.
Hoje, ele vai para qualquer lugar, qualquer água: seja lagoa, rio ou mar. 
Se perde do mundo e encontra aquele menino que um dia já foi. E vai pescar.


*homenagem ao meu leitor de número 38.000