Sou comissária de voo, isso alguns já sabem... Mas pode ser que não saibam que, durante muitos anos, fui casada com um também comissário de voo, meu parceiro por doze completos anos, pai biológico das minhas filhas e pai adotivo do meu mais velho.
Nosso casamento não era regado de carinho. Meu ex marido, apesar da idoneidade, culturalmente não era um homem que se preocupava com demonstrações afetivas. Mas tínhamos lá nossos momentos, e claro, não vivíamos um relacionamento frio e distante.
Nosso trabalho em si foi um facilitador neste aspecto, porque nossas escalas eram distintas e a separação nos trazia sempre um pouco de saudade.
Com o passar dos anos, passamos a compor a equipe de voos internacionais, que nos afastava ainda mais em território e calendário. Os voos internacionais são operados com aeronaves enormes, que têm capacidade para um grande número de passageiros, variando entre 230 a 380 almas em voos de 8 a 12 horas consecutivas, fechados em um charuto metálico, a voar pelos céus do mundo.
Um dia, em um desses retornos saudosos, um abraço fez- me entender de vez uma suspeita desagradável: chegávamos mau cheirosos. Claro, não há ser humano ou desodorantes (e higienes) suficientes que se mantenham por uma carga de trabalho superior a quinze horas. Mas a minha suspeita se concretizou com outro fator: são os odores todos, de todas as pessoas confinadas naquele charuto, qual fazem essa essência desagradável que impregna nossas vestes e corpos. Chegamos de um voo longo, cheirando aos hálitos, chulés e tudo o mais que compõe a degradação que nós, seres humanos, naturalmente sofremos.
Pois bem, explicada até que delicadamente, uma parte nada agradável para qualquer pessoa que ocupar uma aeronave por longas horas viverá (aposto que você não havia reparado nisso, não?), para finalmente, chegar ao ponto dessa crônica.
Percebida essa desventura, parei de abraçar meu marido em sua chegada. E ele, à mim. Nos acostumamos com esse não ato, e não foi essa falta de abraço qual culminou a separação que aconteceu tempos depois dessa descoberta.
E o ato do não abraço se estendeu a todos meus familiares.
Porém, fui presenteada com uma filha tremendamente sagaz e sem melindres para questionar e entender fatos.
Um dia, ela me perguntou: "- Mãe, por quê quando você chega do trabalho você não me abraça? Você me abraça o tempo todo, menos quando você chega de voo."
E eu, na racionalidade da situação, expliquei pela minha lógica pré definida, que meu abraço não era agradável pelos motivos todos já citados.
Ela afirmou: "- Eu gosto do cheiro que você chega"
E eu, indignada: "- Gosta? Como assim gosta, se eu chego fedida?"
E ela responde: "- Porque é o cheiro de que você voltou."
...
O meu cheiro de chegada, até então tinha um sentido: o trabalho terminado, o esforço produzido, a jornada findada. A partir desse dia, o cheiro passou a representar o cheiro do retorno, cheiro da chegada, cheiro da melhor parte da vida.
Precisei de uma menina, na época com sete anos, para me explicar, com uma analogia sem racionalidade alguma, que aquele cheiro não tinha nada de mau cheiroso, e deveria ser regado de um abraço de quem, após dias, retorna para casa, para viver a parte mais importante da vida.
Repensei quantos abraços foram desperdiçados, quantas expectativas para minha filha não atingidas, porque o meu fundamento adulto fazia uma associação preconceituosa. Imaginei quantas vezes ela desejou ser abraçada e eu, a presenteei com uma chegada fria e racional. Pensei em quantas vezes eu fiz com ela, aquilo que me queixava da cultura do outro: de alguma frieza, de pouco toque, de carinho escasso.
Pensei que, como eu, outras tantas pessoas mudam seus jeitos, seja por achismos ou por certezas, transformando aqueles que nos rodeiam... E nós, vamos nos acostumando com a falta, com a ausência, com o desdém.
Acostuma quem não oferece, e acostuma quem não recebe, e o mundo vai ficando mais frio, mais polido, mais politicamente correto, sem demonstrações , sem afeto de fato.
Refleti em quantas ausências não foram recompensadas por um longo abraço só porque eu acreditava fazer o certo, sem sequer perceber qual era a espera da pequena (e dos demais). Pior: quantos abraços saudosos eu havia perdido, quais são, em minha opinião, abraços valiosos, cheios de uma substância que poucos laços contém... A verdade de um sentimento.
Ainda faço voos internacionais, e pelo acaso de horários, muitas vezes não consigo abraçar aos meus filhos em minha chegada, porque eles têm compromissos e nos desencontramos. Muitas vezes, sou eu quem sente a falta do abraço apertado.
E espero, com toda minha verdade, que nenhum dia da vida dos meus, eles deixem de me abraçar porque pensem que seja a melhor decisão a fazer, por conveniência ou por constrangimento.
Porque abraços não podem ser desperdiçados.
Abraços não podem ser adiados.
Porque abraços não dados, são abraços perdidos.
E sentimento passado altera o sentimento futuro.
Cuidemos de nossos abraços e de seus herdeiros.