quinta-feira, 30 de junho de 2016

O tal Português

Só sei que foi há muito tempo.
Está tudo registrado... ele chegou por aqui e resolveu ficar.
Chegou com toda pompa que é característica de um bom europeu. Vestido em veludo, camisa com franjas e jóias... veio reinar mesmo: o português.
Ficou encantado com a beleza desse lugar. Encantou-se com o clima descrito em seu modo mais formal: "(...) a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados (...)."*
E decidiu aportar de vez...

Com o passar dos anos, o português foi se misturando, em todos os sentidos, em todos os gostos, em todos os âmbitos.
Misturou a pele com o índio e virou caboclo, virou mameluco.
E já que já era meio índio, pegou o que já estava aqui para si, mesmo porque, antes de chegar, ele nem os conhecia:
Pegou mania de dormir na rede, de tomar banho todo dia, usar enfeite, se pintar... comeu mandioca, abacaxi... subiu na árvore para colher  pitangacaju. Fugiu da  jararaca e da sucuri. Conheceu a saúva, o tatu e o jabuti. E fez o tupi ser mais europeu.(1)

Em seu reinado, aceitou toda gente, do mundo inteiro que veio aqui também aportar, seja forçosamente ou não. E continuou sua mistura:a pele continuou a colorir, e já se fazia cafuzo, mulato.
E foi descobrindo o quanto  misturar é bom... mas ainda querendo dominar tudo, pega para si o que vem de outras terras e faz como se fosse seu.
Danado esse tal português.

Da África, roubou o quitute, como o feijãoacarajécachaçachuchumugunzáquiabovatapá,  canjica... ainda se tratando de comida, da senzala roubou a feijoada, bem regada no dendê e ainda jura que foi ele mesmo que inventou. Pra comemorar estas aquisições  nada melhor que um samba. Nesse angu todo, aceitou até o candomblé e tem certeza que Iemanjá é filha sua.(2)

Dançando balé roubou tanto jargão, achando chique ter decoração em cabaré com abajur e  buquê. Fez madame usar maquiagem, cachecolbijuteria... virando até clichê. É tanta pose, tanta etiqueta herdada da elite... que até o leite pasteurizou.(3)


Pra mistura ficar mais genial, cozinhou o espaguete, a lasanha, o nhoque sem confetes do maestro italiano, com seu pitoresco piano a ostentar.(4)


Pro seu folclore, sem ciceronear, arrebatou o biquíni e os efeitos que este traz. Nocauteou as outras terras com seu esportefutebolvoleibol, basquete... tem tanto craque no seu estoque, que  repórter nenhum consegue decorar o recorde

Misturou tudo num sanduíche. E se atualizou nas magazines onde pulover e tenis eram bem melhor usar.(5)

Herdou do Oriente o alfaiate quem trouxe algodão, e o embebedou de alfazema, para perfumar seu ambiente. Aceitou o cuscus e temperou essa algazarra com muita azeitona. Aderiu ao bazar e nele vende tâmaras, xarope, lima, café... coisas pra muçulmano nenhum botar defeito.(6)


Aqui ele não conheceu a guerra, mas sabe as consequências de uma guerra interna, de norte a sul. Tomou um vermute em sua embaixada, se sentindo rico por agasalhar tantas palavras de seus irmãos.(7)


Já celebrava em outras bandas a tal Páscoa, e já dava aleluia à Jesus e Maria, de segunda à sábado. Domingo ele resolveu descansar (quem nunca?).(8)


Já se escondeu em biombo,  foi derrubado no judô. Mas ainda assim se fez samurai e tem gueixas de olhos menos esticados.(9)


Tomou vodka, mas jura que a caipirinha boa mesmo é feita de sua cachaça.(10)


Ele aceitou tudo, aceitou todos... mas de um tempo para cá, anda meio cabisbaixo.

Ele se sente 'deletado', em uma inclusão digital, com tudo computadorizado e ele tem sido  deixado para trás.
Fizeram um 'control alt del'  no seu sistema, e ele anda confuso. Não se encontra nem por um corretor automático. 
Não tem mais aqueles que o defendam... Rui Barbosa, Aurélio... eles jazem esquecidos. Os poucos que o conhecem de fato são chamados de chatos, exigentes. 
Hoje, ele nem sabe mais onde ficar. Não sabe onde se encaixa, não sabe quem lhe escreve, aliás, hoje em dia, ele nem sabe mais se 'quem' se escreve com 'qu' ou com 'k'.
Ele só sabe que está preguiçoso, que está picotado, e que é aceito de várias maneiras, mesmo porque, o que menos sabem é como falar com ele ou escrevê-lo.
Ele não sabe mais onde tem hífen, espaço ou acento.
Ele já pegou o seu assento e se retirou, com vergonha dele mesmo.



* Trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha em 1 maio de 1500
(1)palavras de origem tupi
(2)palavras de origem africana
(3)palavras de origem francesa
(4)palavras de origem italiana
(5)palavras de origem inglesa
(6)palavras de origem árabe
(7)palavras de origem alemã
(8)palavras de origem hebraica
(9)palavras de origem japonesa
(10)palavra de origem russa

fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Portugu%C3%AAs_brasileiro

terça-feira, 21 de junho de 2016

Você não é você

Sabe, entre tantas coisas que você me disse,
umas insinuadas, outras escancaradas,
você afirmou que, comigo, 
você não é você.
Pois bem, eu te digo, meu amor,
que ninguém com alguém é o alguém que já foi, 
ou é, em seu íntimo.
Com alguém, a gente é outro alguém
todo nós, sem exceção,
porque com alguém, a gente não é só,
a gente vira “a gente” ou “nós”,
aí, meu amor, o jogo é jogado diferente.
O dia que o alguém for só aquele alguém que é só,
pode crer, esse alguém já está só faz é tempo,
e pode só não se dar conta disso.
Mas acontece, meu amor,
que na teimosia da nossa vaidade, 
a gente insiste em achar que não joga jogo
quando se está com alguém.
Sinto em ser quem te informa
que a gente joga sim. 
Joga o jogo do “a gente”
e nesse jogo a gente se torna outro,
aquele que a gente não sabe quem é 
quando se está só.
E no jogo do ‘a gente”, a gente se transforma
e transforma o outro - veja só, que maravilha -
e mesmo se o jogo terminar,
quem vai embora do “a gente" 
é alguém que já não é mais o mesmo que já foi.
Parece complicado,
mas explicar que a gente existe 
em inúmeras formas é tão mais fácil 
quando se percebe que a gente mudou.
Ahhh e a gente muda, o tempo inteiro
quando encontra alguém.
Basta alguém entrar na jogada,
que a gente vira outro
a gente se transforma
e o bacana desse jogo é - justamente -
deixar de ser aquele alguém que já se foi.
Então, eu te digo, meu amor,
você não é comigo quem você é
porque comigo você foi “a gente”
como eu mesma fui com você.
Só que você, agora, é alguém diferente,
porque, depois da gente,
você se tornou alguém com as mudanças 
que a gente se fez,
como eu mesma,
também não sou mais aquele alguém
que já fui, antes da gente acontecer. 
E se a gente não vale a pena,
a gente sai de cena e 
- com sorte - a gente encontra outro alguém
que faça o nosso alguém virar 


o “a gente” que valha.

sábado, 11 de junho de 2016

Se vocês são...


Se vocês são namorados é porque existe uma faísca.
Existe o que você contempla: o que te encanta, o que te faz vibrar.
Se vocês são namorados, com o outro você se contenta e este te complementa.
Vocês vêm reflexo, transparência e verdade.
Sendo vocês namorados, existe amor. Seja em qual nível for, porque a cada um cabe entregar aquilo que consegue conhecer em si. E amor existe em vários níveis. E assim se contempla ao outro o que se tem de melhor.
Já que vocês são namorados, existe desejo. E esse desejo deve ser completo: em carinho, atenção e sexo.
Aos enamorados, o respeito deve ser mútuo. O outro é outro, mesmo estando com você, ele não será apenas seu. O outro é alguém que deseja estar com você. E esse desejo se esvai se existe sufoco.
Ao namorado deve-se estender o respeito. Você não deve constranger ao outro, individualmente ou em sociedade. Você deve ao seu enamorado a cumplicidade da intimidade a dois.
Ao ser namorado, você deve entender que o outro também tem seu espaço, e este espaço não deve ser pequeno: deve ter o tamanho que o outro precisa para poder respirar livre.
Devem entender  que o namorado tem outros gostos, gêneros... Musicais, teatrais e de vida. E para fazer parte deles, você precisa ser suporte e não empecilho. E assim, quem sabe, acrescentar mais gostos aos seus.
Quando namorados, você devem ter lealdade, partilhar ideais e sonhos, porque a lealdade vai muito além de fidelidade (que, aliás, nem vem ao caso, porque a fidelidade e culpa têm diferentes conceitos dentro da cabeça de cada um).
Enquanto namorados, vocês devem sorrir. Vocês devem rir, porque não há fator mais importante para estar perto de alguém, do que aquele te fazer tão bem a ponto de te fazer uma curva. E que estas curvas sejam sinceras, espontâneas, mesmo que rindo de situação não contornável, mesmo que rindo da própria desgraça.
Sendo namorados, que exista confiança. Porque desconfiança é gravata que aperta, estrangula e desconforta.
Que exista aconchego, mesmo sendo só um abraço silencioso, enquanto lágrima escorre em tristeza.
Que não exista distância até mesmo quando o território físico se fizer presente. Porque o que aquece a um namorado é o amor emanado, e não só o corpo presente.
Que existam presentes, nem que seja um “bom dia” em mensagem, ou qualquer pequeno ato que mostre o quanto existe importância em ouvir, ler, querer bem e saber do outro.
Que existam datas importantes e momentos para serem comemorados, porque a quem se enamora, é necessário celebrar alegria.
Que haja alegria a cada encontro, a cada noite dividida.
Que pequenos momentos sejam também importantes, e que todos os momentos juntos compensem a ausência que se fez necessária.
Que haja entendimento e sabedoria para o passado ficar onde está. E que todas as ações presentes sejam como um belo embrulho enfeitado, para terem motivos a continuar em frente.
...

E que se, por acaso, acontecer qualquer mudança de rumo e alguém precise ir embora... Que haja transparência e verdade, conhecimento e causa, que tudo seja dito e ouvido com frases completas. E quem for embora, vá com o coração limpo e quem ficou, aprenda a não precisar convencer ao outro de sua escolha.
...

E que, seja qual nível vocês estiverem, entendam, procurem e se esforcem para serem eternamente enamorados. Em carinho e admiração. Aquilo, que um dia, os uniu.

*retextualização



sexta-feira, 10 de junho de 2016

Leões virtuais



Essa semana, eu me espantei.
Tenho esse blog há dois anos e meio, e repostei em rede social, uma crônica escrita há dois anos.
Narra uma viagem de São Paulo a Belo Horizonte, onde, por função da escala, ocupava assento como passageira (condição quando precisamos assumir programação em outro destino). 
Nessa narrativa, conto sobre uma criança incrivelmente inteligente e simpática qual fez-me companhia na trajetória do voo.
Nada mais fiz do que relatar, sem muitos detalhes, o prazer e a delícia que tive em passar aquela hora e meia ouvindo aos encantos do mundo daquele menino português.
Para minha surpresa, após repostagem da crônica, esse blog foi acessado mais de 3.000 vezes, quantidade espantosa e incomum, para tão pequeno blog (O próprio Google permite que eu saiba quantos acessos diários, qual a origem dos acessos (por Países) e quais os textos acessados).
Um menino de apenas seis anos fez com que muitas pessoas entrassem em contato, de muitas formas, para agradecer ou elogiar o quanto sentiram emoção naquela história pequenina.
Eis porque eu estou pasme: porque a narrativa nada mais fez além de descrever a adulta impotente que fui dentro de tanta emoção vivida pelo garoto novo.
Eu me perguntei muitas vezes, nesses últimos quatro dias, o por quê tantas pessoas se mobilizaram e tiveram interesse em conhecer os outros textos. Ainda não cheguei a uma conclusão, mas o que parece à mim, pelos feedbacks recebidos é que o mundo está carente de amor. 
Amor nós sabemos que existe não é? A compaixão também. Mas, ainda indago se não caminhamos em lado oposto do que nos seria natural quando enfatizamos ou damos audiência para o que é negativo, que claro, existe, não podemos nos cegar.
Mas a comunicação, nos últimos tempos, e a velocidade espantosa que as noticias são propagadas, têm acentuado ao que é devastador para o crescimento da alma humana: mortes são contabilizadas e viram estatísticas, animais são sacrificados e viram divertimento ou análise, pessoas são estupradas e viram só mais uma notícia… entre tantas outras coisas, que a própria internet facilita para que todos deem sua opinião, seja ela a favor ou contra: todos tem uma e as declaram abertamente, muitos sem sequer cogitar o quanto incitam ou propagam ao mal.
O Mal existe, senhores. Mas não é maioria. O Bem está aqui, conosco, ao nosso lado, mas principalmente dentro de nós. Nós somos quem decidimos se devemos realçar ao Diabo ou ao Anjo que nos habitam.
Pessoas fazendo o bem e vivendo incríveis histórias, estão espalhadas por aí, aos montes, e só não tem a oportunidade, o tempo ou habilidade para escrever sobre elas.
E a internet e suas rede sociais, deveriam ser armas benéficas para que nós ressaltássemos o quanto evoluímos como seres, e não o contrário: jogarmos aos leões virtuais aqueles que não tem como se defender nesse circo cibernético.
Sejamos defensores e leitores de histórias como a do pequeno Rafael, criança amável, gentil, inteligente e extremamente educada. Sua pouca idade estava cheio desses itens.
Não deixemos que as pedras que já carregamos, as cicatrizes que tivemos, as experiência negativas que vivemos, enrijecer nossos corações e almas. Todos já fomos um inocente Rafael.
O mundo está cheio de Rafaéis, e outras histórias incríveis para que nossos corações se acalentem com afago e carinho.
Sejamos propagadores delas, da forma que pudermos ser. 

Ahhh… e, principalmente, paremos de alimentar esses leões famintos por más noticias, com opiniões fomentadas em negativismo, ocupando assento na platéia teórica.

Crônica citada:
http://marilazari.blogspot.com.br/2014/06/eu-conheci-o-rafael.html