segunda-feira, 17 de março de 2014

Colchão de molas


Mas que porra é essa que você acha que faz na cama, Geraldo?
Eu não sei o que faz. Nem tem nome o que você faz.
Já faz tempo, eu dormia com alguém. Agora, eu só queria poder dormir.
Cama de merda, com estrado estragado e molas velhas. Eu disse que eu não queria colchão de molas, Geraldo! Mas você insistiu: é ensacado, não vai estragar...
Como assim, não vai estragar? 
Pode até ser que não estrague mesmo, se for usado para dormir com gente de peso decente em cima, e não com um troglodita que não enxerga mais o joelho.
Talvez até a porra da mola ensacada não rangesse, se o colchão tivesse sido trocado quanto expirou o tempo de garantia dele, de dez anos de uso. Tempo que já passou mais doze. 
Você reclama de tudo, Geraldo. De tudo. E reclama de tudo, como se tudo fosse culpa minha. Mas, Geraldo! A porra do colchão não é. Foi  você quem escolheu e bateu o pé.
Eu te peço para comprar um novo já faz anos, mas você insiste em dizer que ele está bom. Está bom pra alguém como você, né Geraldo? Que tem um colchão próprio amarrado na cintura, e pode dormir até sobre uma pedra.
Está bom, porque você gasta em cerveja o pouco dinheiro que eu consigo economizar, que serviria pra comprar um colchão novo.
Está bom pra você, que chega quase sempre com aquele hálito de cevada amargo. E deita onde estiver, como estiver. E ronca parecendo um animal gritando quando é abatido.
Nessa porra desta cama, eu vivo meus piores momentos, Geraldo. Ou melhor, eu morro os meus dias Geraldo.
Nessa merda desta cama nojenta, eu passo as noite acordada e com frio, porque você me sabota em todos os detalhes, Geraldo.
Você reclama que eu tenho o pé gelado, mas não me deixa usar meias. Reclama se eu me deito de pijama, reclama se eu me mexo, reclama se eu puxo o cobertor. 
Você já pensou o que você quer na cama, Geraldo? Porque sexo, já faz tempo que eu não tenho. Você até faz... Faz qualquer coisa dentro de mim, que eu já nem sei mais o que é. Você se remexe, geme alto, parece um ogro. Balança toda a cama, que bate na parede, que range as molas. Você se estremece em cima de mim, fica ofegante e para num repente, como se estivesse morto. Vira a barriga pra cima, e começa a roncar. Ronco que assustaria até um outro porco da mesma espécie que a sua. Ronca, range, rosna. E reclama que eu não posso pôr  uma meia no pé, Geraldo? Não quer pijama, não quer meias, não me deixa o cobertor... O que sobrou da cama pra mim, Geraldo? Olhar pro teto e esperar, entre um ronco e outro seu, se Deus já fez o favor de te tirar daqui. Porque é o que espero que aconteça quando você está dormindo. Enquanto você dorme, Geraldo, esse sono perturbador seu, eu rezo. Rezo, para que em uma das paradas suas, sua morte tenha chegado. Parece que você ronca, morre e acorda. Ronca, morre e renasce... Mas nada de Deus querer tirar você daqui e me deixar em paz com minhas meias quentes, e meu pijama de malha. 
Porque, Geraldo, você pode ter certeza... Quando Deus me fizer este favor, já de antemão eu te autorizo a vir puxar meu pé. Mas já vou avisando: não será esse pé gelado, de uma mulher frigida, da coluna endurecida, de corpo frio.
Ele estará quentinho, com uma meia felpuda, numa cama novinha. Que será a primeira coisa que eu comprarei quando você morrer, Geraldo. Um colchão sem ranger, sem mola, sem estrado quebrado, sem cabelo do seu peito, sem suor de cerveja, sem resto de porra. Uma cama com porra nenhuma, Geraldo. Só com um cobertor todo meu.

*texto produzido para a peça "Casa de Retalhos" de Marcio Azevedo.

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