terça-feira, 18 de novembro de 2014

O tal português

Só sei que foi há muito tempo.
Está tudo registrado... ele chegou por aqui e resolveu ficar.
Chegou com toda pompa que é característica de um bom europeu. Vestido em veludo, camisa com franjas e jóias... veio reinar mesmo: o português.
Ficou encantado com a beleza desse lugar. Encantou-se com o clima descrito em seu modo mais formal: "(...) a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados (...)."*
E decidiu aportar de vez...

Com o passar dos anos, o português foi se misturando, em todos os sentidos, em todos os gostos, em todos os âmbitos.
Misturou a pele com o índio e virou caboclo, virou mameluco.
E já que já era meio índio, pegou o que já estava aqui para si, mesmo porque, antes de chegar, ele nem os conhecia:
Pegou mania de dormir na rede, de tomar banho todo dia, usar enfeite, se pintar... comeu mandioca, abacaxi... subiu na árvore para colher  pitanga, caju. Fugiu da  jararaca e da sucuri. Conheceu a saúva, o tatu e o jabuti. E fez o tupi ser mais europeu.(1)

Em seu reinado, aceitou toda gente, do mundo inteiro que veio aqui também aportar, seja forçosamente ou não. E continuou sua mistura:a pele continuou a colorir, e já se fazia cafuzo, mulato.
E foi descobrindo o quanto  misturar é bom... mas ainda querendo dominar tudo, pega para si o que vem de outras terras e faz como se fosse seu.
Danado esse tal português.

Da África, roubou o quitute, como o feijão, acarajé, cachaça, chuchu, mugunzá, quiabo, vatapá,  canjica... ainda se tratando de comida, da senzala roubou a feijoada, bem regada no dendê e ainda jura que foi ele mesmo que inventou. Pra comemorar estas aquisições  nada melhor que um samba. Nesse angu todo, aceitou até o candomblé e tem certeza que Iemanjá é filha sua.(2)

Dançando balé roubou tanto jargão, achando chique ter decoração em cabaré com abajur e  buquê. Fez madame usar maquiagem, cachecol, bijuteria... virando até clichê. É tanta pose, tanta etiqueta herdada da elite... que até o leite pasteurizou.(3)


Pra mistura ficar mais genial, cozinhou o espaguete, a lasanha, o nhoque sem confetes do maestro italiano, com seu pitoresco piano a ostentar.(4)


Pro seu folclore, sem ciceronear, arrebatou o biquíni e os efeitos que este traz. Nocauteou as outras terras com seu esporte: futebol, voleibol, basquete... tem tanto craque no seu estoque, que  repórter nenhum consegue decorar o recorde

Misturou tudo num sanduíche. E se atualizou nas magazines onde pulover e tenis eram bem melhor usar.(5)

Herdou do Oriente o alfaiate quem trouxe algodão, e o embebedou de alfazema, para perfumar seu ambiente. Aceitou o cuscus e temperou essa algazarra com muita azeitona. Aderiu ao bazar e nele vende tâmaras, xarope, lima, café... coisas pra muçulmano nenhum botar defeito.(6)

Aqui ele não conheceu a guerra, mas sabe as consequências de uma guerra interna, de norte a sul. Tomou um vermute em sua embaixada, se sentindo rico por agasalhar tantas palavras de seus irmãos.(7)

Já celebrava em outras bandas a tal Páscoa, e já dava aleluia à Jesus e Maria, de segunda à sábado. Domingo ele resolveu descansar (quem nunca?).(8)

Já se escondeu em biombo,  foi derrubado no judô. Mas ainda assim se fez samurai e tem gueixas de olhos menos esticados.(9)

Tomou vodka, mas jura que a caipirinha boa mesmo é feita de sua cachaça.(10)

Ele aceitou tudo, aceitou todos... mas de um tempo para cá, anda meio cabisbaixo.
Ele se sente 'deletado', em uma inclusão digital, com tudo computadorizado e ele tem sido  deixado para trás.
Fizeram um 'control alt del'  no seu sistema, e ele anda confuso. Não se encontra nem por um corretor automático. 
Não tem mais aqueles que o defendam... Rui Barbosa, Aurélio... eles jazem esquecidos. Os poucos que o conhecem de fato são chamados de chatos, exigentes. 
Hoje, ele nem sabe mais onde ficar. Não sabe onde se encaixa, não sabe quem lhe escreve, aliás, hoje em dia, ele nem sabe mais se 'quem' se escreve com 'qu' ou com 'k'.
Ele só sabe que está preguiçoso, que está picotado, e que é aceito de várias maneiras, mesmo porque, o que menos sabem é como falar com ele ou escrevê-lo.
Ele não sabe mais onde tem hífen, espaço ou acento.
Ele já pegou o seu assento e se retirou, com vergonha dele mesmo.




* Trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha em 1 maio de 1500
(1)palavras de origem tupi
(2)palavras de origem africana
(3)palavras de origem francesa
(4)palavras de origem italiana
(5)palavras de origem inglesa
(6)palavras de origem árabe
(7)palavras de origem alemã
(8)palavras de origem hebraica
(9)palavras de origem japonesa
(10)palavra de origem russa

fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Portugu%C3%AAs_brasileiro

Nenhum comentário:

Postar um comentário