domingo, 10 de agosto de 2014

Ela nasceu mais que uma vez


A Julia sempre foi atrapalhadinha… tropeçava e caía bastante. 
Até que, um dia, começaram a aparecer manchas em sua perna. Pontinhos roxos, como hematomas de batidas em desleixo.
 “Julia, dói aqui?” E a resposta era negativa para uns, positiva para outros.
As manchas foram aumentando, em número e volume. “Vai ver ela é estabanada”, era uma das possibilidades ouvida.
Minha intuição foi seguida ao marcar a disputadíssima médica pediatra. Na espera da consulta, mais manchas: agora nas costas e bumbum. 
Para o filho mais velho, a incumbência para ficar de olho na babá. Na escola, outra investigação a parte.
Um dia antes da consulta, uma mancha do tamanho de uma bola de tênis, de cor forte, lilás, na perna direita. O coração já dava pulos.
Na Dra Nádia, exame de rotina e pedido de exame de sangue para verificar aquilo tudo. O resultado alguns dias depois: no exame indicando índice regular de plaquetas: 130.000. 
O resultado da Julia: 8.000.

A Pediatra abriu o envelope, fez cara de poucos amigos e falou: quero outro exame em urgência. Vocês ficarão por aqui. Os possíveis diagnósticos eram terríveis: pode ser uma leucemia ou púrpura. 
Leucemia todo mundo conhece, a púrpura eu conhecia muito bem. Não fazia nem um ano que havíamos participado da despedida do coleguinha da Juju, filho de um casal de amigos muito próximos. Havíamos sentido quase na pele a dor dos pais, cujo filho tinha sido levado embora pela púrpura.
Exame refeito, resultado igual. Não era o exame que apontava resultado errado. A Juju tinha problema e deveria ser internada naquele momento. 

Descrever o pânico da situação toda, eu acredito que seja desnecessário. 

O que mais me deixava preocupada era o que eu lia no evangelho. Semanalmente, eu fazia a leitura do evangelho e o abria de forma aleatória. Havia uns dois meses que o tema da minha leitura havia viciado: “quando um pai perde um filho”. E eu o lia e o interpretava a minha maneira.
Mas naquele momento, com a Julia internada, eu comecei a ligar os pontos: Estavam me mandando recado e eu não havia percebido! Agora tudo tinha lógica e o estudo regular só me preparava para algo inevitável: levariam minha bebê embora.

A Julia, com apenas 6 anos, não entendia nada. Não entendia por que teria que ficar no hospital quando se sentia tão disposta. Não entendia tantos exames. Não entendia as pessoas tão preocupadas, nem o entra e sai de nossas vidas, repentinamente. Telefonemas e explicações com zelo para que a menina não se assustasse, quando, na verdade, assustados estávamos só nós, os adultos.

Sozinha com ela, na primeira noite de hospital, eu entrei em pânico. Medo de perder minha Juju e incapaz de mudar qualquer curso. Teria que aceitar o que acontecesse. Respirei fundo.
Foi quando eu me ajoelhei aos pés da cama e rezei. Fiz oração com tanta fé, parecia que ecoava dentro de mim e podia ser ouvida pelos corredores do hospital. Eu sentia meu corpo inteiro vibrar.
Lágrimas, eu não tenho conta de quantas. Sem exagero, minha roupa molhou sem que eu percebesse. Não faço ideia por quanto tempo fiquei ali. Mas ali, ajoelhada, de olhos fechados, em ambiente frio (como todo hospital possui), ouvia um som diferente, como se fosse um cântico, e fiquei no meu silêncio para poder entender. Aos poucos, fui distinguindo… eram diferentes orações, vindas de amigos muito próximos, que estavam reunidos pela minha pequena. Eu podia ouvir aos clamores. Podia sentir o amor deles de longe… senti um calor subir pela minha espinha e explodir em meu coração. 
Eu soltei meu corpo como quem se deixa morrer. Mas a verdade é que, de morte, ali, não havia nada… nascia pessoa que descobriria uma grande verdade: aos pés de minha filha doente, eu descobri quem era dono de tudo, de quem era o comando. 
E decidi aceitar a Sua decisão. Em voz alta falei: “Seja feita a Sua vontade” e me preparei para aproveitar os momentos que teria com minha filha, independente de quanto tempo mais fosse.


Foram muitas agulhas. Muitas.
Nos primeiros dias, exame de sangue de manhã, tarde e noite.
E no quarto dia, como um milagre, as tais plaquetas aumentaram para cinquenta mil unidades.
Ela estava livre para ir para casa, mas longe de estar livre das agulhas.
Por semanas, exames diários. Com estabilidade das plaquetas, a intensidade das agulhadas passaram para dia sim, dia não… dois dias não… três dias não… até ser semanal, quinzenal, mensal.
Ela não fazia uma careta sequer. Nem umazinha!
Foi impedida de fazer educação física, andar de bicicleta, patinar ou qualquer atividade que a levasse a um derrame qualquer.
A rotina da hematologia e laboratórios, fazia a presença da Julia e de sua simpatia, serem celebradas nos consultórios que passamos.

Por algumas vezes eu tentei explicar para ela o por quê, o que ela tinha, por que tanto remédio, por que tanto tratamento. Todas as vezes ela respondeu, sem rispidez alguma “Eu não quero saber porque eu não tenho nada”.
E foi respeitada a sua vontade de não saber. Mas, mais do que isso, ela não aceitou ser doente em momento algum.
Ela não resmungou, não reclamou, não hostilizou qualquer momento que tenha acontecido naquele primeiro ano horroroso, nem nos cuidados dos dois anos seguintes.

Ela desenvolveu púrpura, ninguém sabe o por quê. Mas ela mesma expulsou a tal púrpura, com sua cabeça boa e jeito de lidar a situação.
Para nós, os adultos, ficou a gratidão a Deus e aos milagres que Ele opera. Gratidão aos amigos, parentes e pessoas que nos ajudaram de alguma forma.
Ficou a certeza de que, como já disse antes, quem está no comando é Ele. E ainda, que a oração é bálsamo e remédio poderoso.

O dia que vimos seus olhos claros brilhantes, pela primeira vez, foi sensacional. Foi mágico e lindo, como qualquer nascimento. 
Porém, vê-la todos os dias, com esse olhar de menina paciente, sábia, madura, querida, atenciosa… de quem venceu sua própria batalha… é motivo para comemorar muito mais, não apenas em uma data.


Feliz aniversário, princesa linda. Parabéns por sua luta vencida.

Um comentário:

  1. Júlia... como uma verdadeira princesa, com imensos olhos claros e cachinhos ruivos entrou na minha vida prá tirar tudo o que era ruim e feio - de dentro de mim. Pq conforme vc crescia, vencia novos obstáculos e aprendia coisas novas, vc na verdade, me ensinava como ver um mundo novo, como rever sentimentos e como ser menos egoísta. Obrigada princesa, por ter vindo a este mundo, por ter permanecido nele e por nos presentear com toda essa sua atenção e seu amor especiais. Te amo tanto e a cada dia que passa, te amo mais! Um milagre, graças a sua mágica de princesa... :) Bjos da sua tia Má...

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