sexta-feira, 6 de junho de 2014

Eu conheci o Rafael

Eu conheci o Rafael

Se eu fosse tentar adivinhar, chutaria que ele é dinamarquês.
Cabelos loiros quase brancos,  corte próximo a militar, olhos azuis, rosto arredondado, olhos expressivos, lábios carnudos. 
Lindo, simplesmente lindo.
Uma confusão em sua família fez com que o Rafa sentasse ao meu lado. Para minha surpresa, ele é português. Na família de quatro pessoas, uma precisou ficar separada e o escolhido foi ele, para minha felicidade. Na verdade, eu me intrometi na decisão e ofereci o meu lado e companhia pra ele, acho que ele também foi com a minha cara, como eu com a dele.
Eu levantei e ele se sentou junto à janela.
Eu não sei quanto à vocês, mas eu tenho uma dificuldade absurda para entender o português de Portugal. Preciso, praticamente, de uma tecla SAP, ou algumas horas para me acostumar, ou alguém que tenha a paciência de repetir  uma sentença inteira pra ver se eu entendo, ao menos, o assunto principal. Eu não teria toda essa disponibilidade de tempo, mas tinha um companheiro de viagem incrivelmente simpático e gentil, que me ganhou ali, de cara: quando começou a sua apresentação, perguntou meu nome e idade. Quando eu disse trinta e oito, ele fez (meio que) uma careta de decepção, mas sorriu e complementou: "ainda assim é muito bonita!" E me ganhou, em atenção, em interesse, mesmo sendo só gentil... e destravou minha dificuldade com o tal português original. Agora eu queria conversar com ele MESMO! 
Ele tem seis anos de idade.
Rafael me contou tudo. De onde vinha, para onde ia: veio ao Brasil visitar a mãe, que está em "Horizonte", como ele define, esquecendo da palavra Belo. Não investiguei o por quê estarem separados (mãe e filhos), achei inoportuno, mas vinham com ele sua irmã "mais pequena" a Catarina, e a "mana mais grande", a Natale. O pai, ele repetiu três vezes o nome e eu desisti de entender, mas estava junto.
O Rafa não conseguia entender o tamanho e a distância do Brasil. Nem o tamanho do território brasileiro. Na verdade, ele achava que saía de um Brasil para o outro Brasil, se referindo a cidades diferentes. "Senhor Paulo" foi o primeiro Brasil que ele pousou e agora decolávamos para Horizonte o outro Brasil, onde está sua mãe.
Eu mostrei um mapa desenhado na revista de bordo (confesso TAM, fui eu, lá na poltrona 26E, mas eu precisava): Rabisquei Portugal, fiz uma linha até o Brasil, mostrei o tamanho do Brasil. Mostrei "Senhor Paulo", mostrei "Horizonte", isso tudo antes mesmo de 'descolar'.  Ele não conseguia acreditar que Portugal, que é tão grande, ficava tão pequeno perto do Brasil. Fizemos uma linha do seu voo. Ele reclamou que foi obrigado a fechar a janelas no voo grande.
Ele me falou que está enamorado da Adriana, que também tem seis anos, é do seu colégio. Contou até trinta sem errar um número sequer e depois continuava a contar os decimais de um até nove, e quando chegava no inteiro, ele dizia "trinta" e eu o corrigia dizendo qual era o correto e ele prosseguia contando. Foi até meio exibido na contagem, como quem mostra suas habilidades.
Falou de polícia, bombeiro, ambulância, sirene, bandido, desmaio, roubo.
Questionou o por quê as pessoas roubam. Eu respondi, de cara, bem caretona mesmo, que é porque o sujeito tem preguiça de trabalhar. Ele me disse que não acha, ele acha mesmo que é porque o cara quer andar no carro da polícia com a sirene ligada. E eu me senti uma ridícula, e percebi o quanto o mundo infantil é mesmo encantador, eu teria que entrar na onda dele, deixar de ter razão e ouvir um pouco mais.
Ele pegou o cartão de segurança e começou a interpretar as figuras dali. Toda a sua interpretação era errônea, mas como eu estava decidida a  ouvir mais e falar menos, ouvi procedimentos incríveis, como: "o avião está proibido de pousar na água. Se for sair do avião pra entrar na piscina, tem que segurar uma mala.""Se pegar fogo no avião, tem que usar o escorrega" e ainda perguntou: "Se eu for usar o escorrega posso levantar as mãos e gritar?" Eu disse: 'deve!'
Ele perguntou se asa quebrasse, se um raio caísse, se batesse numa pedra. 'Aqui no alto? Não tem pedra!', eu disse, mas insistia em querer ouvir a resposta que o avião poderia se espatifar. Quando eu entendi que era isso, expliquei que um míssil poderia derrubar o avião, mas isso só acontece na guerra, e que o Brasil não estava em guerra (menti sobre nossa guerra interna pra não fazer mais confusão na cabeça do guri).
Ele ficou contente com a resposta.
Falamos de praia, calor, jogar bola. De vez em quando ele ria alto e falava "seu nariz não está a funcionar!", tirando um belo sarro da minha congestão nasal,  ganhada pós voo Europa/ América do Sul, com diferença de vinte graus e que neste voo piorou consideravelmente. E ele, mais uma vez, estava correto, em alguns momentos, meu nariz não funcionou, e ele ria ou gargalhava.
Às vezes, seu pai o repreendia, olhando para trás e pedindo para ele parar de falar. Mas eu fiz aquilo que eu detesto que façam quando eu corrijo um dos meus filhos: dizia que estava tudo bem, não tinha problema, como quem tira a ordem do superior. Mas eu precisava ouvir o Rafa. Ele é sensacional.
Ele não se convenceu que não sobrevoamos o mar. As áreas escuras, ele insistiu que era. Viu até barco, com luz e tudo. Aí, era minha vez de rir e dizer que tudo aquilo era árvore. Mas estava escuro e ele não quis saber.
Pedi um 'sumo' de laranja pra ele. Ele se encantou com o fato de copo não cair do buraco da mesa. Disse não gostar de torradas, mas comeu o petisco inteiro do saquinho.
Nós já estávamos cúmplices, ele me contou segredinhos e eu também contei alguns meus.
Na hora do pouso o pai dele o recriminou de novo, disse precisar fazer silêncio. Ele, com os olhos arregalados, no desespero de me dizer alguma coisa. Eu entendi e me inclinei com o ouvido para ele, para ele poder cochichar. Ele sussurrou: "Eu estou tão excitado!" E sorriu, lindo, aquela mistura de inocência, espera, encanto e sabedoria dos seus poucos anos.
Pousamos e ele não desatou os cintos até a hora que o sinal luminoso não se apagou. Ainda recriminou aos outros apressados. Mas assim que pôde, abriu o dele e o meu. Pediu licença e saiu rápido para a segurança do seu pai e a necessidade de ver a mãe.
Antes de sair, inclinou a cabecinha para mim e disse: "Eu fiz uma ótima viagem, obrigado". E quase me fez chorar, com tanta educação.
Ele saiu com a família.
Fiquei imaginando o desespero, o compasso do coração, a vontade do abraço, o tanto de coisas que aconteciam ali naquele corpinho.
Saí do avião muito, muito depois deles, mas ainda assim os vi esperando as malas na esteira de bagagens.
Eu fui embora antes. Precisava ir, porque acompanhava uma tripulação inteira.
Se o aeroporto de Confins não ficasse tão longe da cidade de Belo Horizonte, eu teria pego um taxi só para poder ver o encontro deles ali.
Arrisquei tentar descobrir, nas mulheres que estavam no desembarque, aquela que teria a expressão de quem espera por ele.
Mas eram muitos rostos expressivos e ansiosos. Não consegui descobrir.
Detesto história sem final. Mas eu precisava dividir essa.
Mesmo que seja para dividir a decepção de não ter presenciado o encontro da mãe com o lindo Rafa que eu tive o prazer de ter como companhia, em um voo, que só seria mais um voo.

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