domingo, 22 de fevereiro de 2015

Muitos Pedros para poucos gentis

Como que um milagre, hoje fui ao mercado sem pressa.
Ainda bem, porque era o horário que mais tinha gente. Estava abarrotado de pessoas, filas imensas nos caixas e eu respirei fundo e fiz tudo com toda a paciência do mundo.
Terminada a função chata de ensacar e colocar no carro, voltei para devolver o carrinho dentro do mercado. 
Foi quando eu o vi.
De estatura muito baixa e idade avançada. Costas arqueadas, representando os anos todos que ele carrega. Dando passos curtos, com o apoio de duas bengalas de tamanhos diferentes e na mão direita fazendo o esforço de levar duas sacolinhas versus aquele que precisava ser seu apoio.
Andava bem devagarzinho e as pessoas nitidamente notavam a sua dificuldade. Posso dizer que chamava atenção de 90 porcento das pessoas que passavam por ele.
Era visível o desconforto em algumas, o eventual pensamento de querer ajudar, como outros que passaram, olharam e seguiram com indiferença.
Ninguém parou para ajudar.
Eu fui até o lugar de guardar carrinhos e voltei, ainda prestando atenção nas pessoas que o notavam.
Foi fácil alcançá-lo com a dificuldade que se fazia presente entre o equilíbrio, o peso e a idade.
“O senhor precisa de ajuda?”, disse quase ao pé do ouvido dele… pensei que deveria ter dificuldade em ouvir.
Ele hesitou. Parou e disse: “- Se você puder me ajudar até o ponto de ônibus…”
Foi quando eu notei seus olhos. Eles já têm aquele opaco de muita idade. Deveriam ser lindos quando era mais novo, mas agora só carregam a idade e a maldade que o próprio corpo faz com o passar de muitos anos. Ele tem a pele muito machucada. Uma espécie de descamação… nas mãos, braços e pés, que eram as partes visíveis. Supus que o restante do corpo também teria.
Eu perguntei para onde iria e ele me disse. Não era meu caminho, mas me desviaria em tanto insignificante. Ofereci para levá-lo em casa. Ele respondeu um “- Jura, filha?” com um quase sorriso, num semblante cheio de cansaço.
Fiz menção de pegar as sacolinhas de sua mão e ele quase recusou, dizendo estarem pesadas. Mas eu o convenci e as carreguei. Para minha idade não estavam nada pesadas, e a falta delas fizeram aquele senhor acelerar o passo consideravelmente.   Cheguei a comentar que ele não precisava ter pressa, mas percebi que ele até conseguia andar bem com seus dois apoios. Era o peso extra que atrapalhava.
Enquanto caminhava ao seu lado, fomos abordados por duas motoristas distintas. A primeira perguntou se precisávamos de ajuda e eu respondi que estava tudo bem. A segunda perguntou onde ele morava e se ofereceu para levar… agora ele já tinha carona e eu só agradeci.
Tão pequeno ele é que teve dificuldade em entrar no meu carro.
Fizemos o caminho da sua casa e em uns sete minutos, chegamos lá.
Me disse no caminho que mora na casa da irmã… na verdade, aluga a garagem, mencionou por quantos reais. Comentou como os preços estão altos. 
Perguntei seu nome e ele disse “- Me chamam de Pedro”.
E eu: “Mas seu nome não é Pedro?”
“- Me chamo Gentil Pedro. Mas só me chamam de Pedro”.
Seo Pedro apontou o caminho direitinho. Fala um português erradinho, daqueles de pessoas bem simples. Na rua da casa apontou “- Moro ali, na frente daquela ‘arvrinha’…” Nessa hora, deu vontade de o pegar no colo, com o diminutivo de árvore. Lembrei da minha avó.
Deixei Seo Pedro dentro de casa. Ele falou pra eu ficar à vontade, mas eu não consegui. Ele, literalmente, mora dentro de uma garagem, que parece apenas uma garagem e não uma casa. 
Minha alienação condicionada me fez não olhar para os lados, porque não queria ter certeza da condição de Seo Pedro.

Vim para casa chorando, e cheguei chorando.
Fiquei com dó e com muito medo.
Fiquei com pena de um ser humano que deveria ter o mínimo, porque todos os seres vivos tem direito ao mínimo: abrigo, alimento, saúde e amor, todos dignos. Certeza que ele não os têm.
Certeza que precisa de tratamento e depende do sistema de saúde público. Certeza que precisa de transporte seguro. Certeza que precisa de cuidados. E é bem provável que tenha que enfrentar a burocracia homérica para receber o pouco que deve ter acesso.
Fiquei com medo, porque o mundo é muito maluco, e pode ser que um dia, eu mesma me encontre na condição de Seo Pedro. E medo de que as pessoas passem por mim, me olhem, e sigam para seus lares, com qualquer pensamento: seja indignação e pena, ou desprezo porque o mundo está cheio de Pedros.
Fiquei com medo de ter feito esse pequeno gesto insignificante por culpa de ter acesso a um carro, ou por apenas estar disponível, ou para dormir com a consciência tranquila. Nenhuma dessas atitudes é boa.
Fiquei com medo de não poder fazer mais nada, nem para o Seo Pedro, ou para qualquer outra pessoa, porque a maioria de nós acha que já não tem mais jeito mesmo e deixa passar o senhorzinho com sacolas e muletas, e segue a vida, como se não tivessem outros seres precisando de ajuda.
Fiquei com medo de acabarmos todos solitários, em nossas garagens alugadas, que pode ser uma analogia boa para um mundo consumista,  habitado por muitas pessoas individualistas e egoístas.

Fiquei com medo por ter encontrado um homem que se chama Gentil e nem mesmo o nome dele, os outros se sentem confortáveis em falar.

3 comentários:

  1. Fico pensando naquele questionamento: "pq queremos ser bons?" Seria por egoísmo?? Penso, penso e não chego a conclusão alguma. Mas não desisto de perguntar. Temos muito, queremos muito, reclamamos muito e desperdiçamos muito. Só sei que se a meta é melhorar, vc com seu exemplo, sua atitude e seu texto com certeza já fez muita gente refletir. E pode ter certeza, no universo do Seo Gentil Pedro vc fez a maior diferença e lançou esperança onde só tinha cansaço. O retorno de um olhar de gratidão, de uma conversa ou de um sorriso - mesmo que não consigamos mudar muito mais do que isso - dá uma sensação de conexão, de fazer parte de uma mesma Coisa. Amo essa conexão. Amo sentir isso. Amo ser sua irmã. Bj e saudades...

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  2. vc e linda por dentro e por fora...tambem tenho medo...

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  3. Minha linda, você sempre tão gentil e amável. Sempre te admirando. Beijossss

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